O “Samba é meu dom”, diz o samba de Wilson das Neves em parceria com Paulo Sérgio Pinheiro. Segundo a música, uma das evidências desse dom é a capacidade que o sambista tem de transitar pelas inúmeras variações do gênero: “de quadra, de enredo, de roda, e na palma da mão”. Evidencia esse dom também o fato de o sambista viver de samba, o fato de tirar do samba o seu “pão”. A letra é linda de ponta à ponta. Um Ode à “grande tradição” do samba. E me fez pensar – qual o meu dom?
Saber de modo tão inequívoco qual o seu dom, aquilo que, não apenas “se faz bem”, mas que se deseja morrer fazendo, como os sambistas em questão, que desejam “morrer de baquetas na mão” deve um “ativo” profissional de grande valor. Creio que deva ser, inclusive, o ponto de partida para qualquer carreira de sucesso. Não me recordo, pelo menos, do depoimento de nenhum profissional de sucesso que comece por - eu odeio o que faço. Principalmente naqueles momentos nos quais as circunstâncias parecem desfavoráveis, quando o dinheiro demora a entrar, quando as coisas parecem não estar dando certo, gostar do que se faz é o que dá forças para insistir, tentar novamente, recomeçar.
O curioso para mim, contudo, ao ouvir pela manhã a canção de que tratamos aqui, foi que, a despeito de falar do samba como um dom, a ideia de aprender atravessasse a canção inteira. O sambista aprendeu a bater samba ao compasso do coração, aprendeu a dançar samba, e não em qualquer lugar, na Escola de samba Império Serrano, escola “da [sua] paixão”. Cantar samba também foi algo que precisou aprender, fez isso com “quem dele fez profissão”, não com qualquer um, Mário Reis, Vassourinha, Ataulfo, Ismael e o grande Jamelão”, confessa o sambista. Aprendeu, diga-se de passagem, assistindo e ouvindo “quem sempre fez samba bom”.
A ideia apresentada nessa canção desafia a noção consolidada pela tradição cristã de que dom é “favor imerecido”. Dom aqui é o objeto de um longo trabalho, repleto de atenção, investimento e cuidado. Dom aqui é escolha, decisão e aprendizado. Pouco importa se essa decisão se deu antes ou depois de aprender. O sambista precisou das duas coisas, paixão e aprendizado.
Tudo isso me fez pensar muito sobre o tipo de artista e de professor que desejo ser e de como desejaria que fossem minhas aulas. Uma grande escola de samba, pensei, um terreiro, onde conceitos, técnicas e conteúdos teóricos pudessem estar em harmonia com os desejos e aspirações dos alunos. Um lugar onde pudéssemos sentar em roda e onde a assimilação dessa configuração física não fosse apenas a aceitação de um novo “layout” para o espaço, mas a afirmação categórica da certeza de que o conhecimento, assim como o samba, circula. Ele não começa e nem termina no professor, ele gira e nos surpreende, nos envolve e seduz. Lecionar é aprender a sambar em roda.
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